03 maio SEGURANÇA JURÍDICA X INVERSÃO DO ÔNUS DA PROVA EM MATÉRIA AMBIENTAL
DISCUSSÃO QUANTO A CURSO HÍDRICO CANALIZADO. NULIDADE DA LICENÇA AMBIENTAL EM RAZÃO DA SUPOSTA INCOMPETÊNCIA DA FAMCRI. ARGUMENTO REFUTADO PELA CÂMARA EM PRÉVIO AGRAVO DE INSTRUMENTO. PRECLUSÃO. RECURSO NÃO CONHECIDO NO PONTO. MERITUM CAUSAE. FALTA DE PROVAS DO ALEGADO DANO AMBIENTAL. LAUDO PERICIAL EXPLÍCITO A ATESTAR QUE NÃO É POSSÍVEL DETERMINAR SE O CORPO HÍDRICO SUB JUDICE É “NATURAL (DE REGIME INTERMITENTE OU PERENE) OU UM TALVEGUE PARA O ESCOAMENTO DE ÁGUAS SUPERFICIAIS”. ONUS PROBANDI ATRIBUÍDO AO AUTOR DA DEMANDA IN CASU.
Esta foi a ementa do recente e inovador julgado (Autos nº 00068983820148240020, em que tivemos a oportunidade de ser procuradora.
A decisão de Relatoria do Eminente Desembargador Jorge Luiz de Borba é muito abrangente e merece atenção dos estudiosos do tema, porquanto traz novo olhar do Egrégio Tribunal de Justiça deste Estado em relação a propalada inversão do ônus da prova em Direito Ambiental.
Eis a íntegra da decisão:
Apelação Cível n. 0006898-38.2014.8.24.0020 Relator designado: Desembargador Jorge Luiz de Borba AÇÃO CIVIL PÚBLICA. DIREITO AMBIENTAL. EDIFICAÇÃO DE SHOPPING CENTER. SOBRESTAMENTO DO FEITO COM BASE NO GRUPO REPRESENTATIVO 07 DESTA CORTE. DESCABIMENTO. DISCUSSÃO QUANTO A CURSO HÍDRICO CANALIZADO. NULIDADE DA LICENÇA AMBIENTAL EM RAZÃO DA SUPOSTA INCOMPETÊNCIA DA FAMCRI. ARGUMENTO REFUTADO PELA CÂMARA EM PRÉVIO AGRAVO DE INSTRUMENTO. PRECLUSÃO. RECURSO NÃO CONHECIDO NO PONTO. MERITUM CAUSAE. FALTA DE PROVAS DO ALEGADO DANO AMBIENTAL. LAUDO PERICIAL EXPLÍCITO A ATESTAR QUE NÃO É POSSÍVEL DETERMINAR SE O CORPO HÍDRICO SUB JUDICE É “NATURAL (DE REGIME INTERMITENTE OU PERENE) OU UM TALVEGUE PARA O ESCOAMENTO DE ÁGUAS SUPERFICIAIS”. ONUS PROBANDI ATRIBUÍDO AO AUTOR DA DEMANDA IN CASU. IMPOSSIBILIDADE DE SE RESPONSABILIZAR OS RÉUS POR FORÇA DA ALEGADAMENTE ILÍCITA SUPRESSÃO DE VEGETAÇÃO NO LOCAL. QUAESTIO NÃO ABRANGIDA PELA CAUSA PETENDI. PRETENSÃO INICIAL RESTRITA AO DANO QUE ADVIRIA DA ALTERAÇÃO DE CORPOS HÍDRICOS. “Assim como não é dado à parte autora modificar os elementos constitutivos da demanda (partes, causa de pedir e pedido) no curso do processo, ao Órgão Judicial, pela regra da correspondência (CPC/1973, art. 128 e 460), não é permitido deles desvincular-se durante o trâmite processual e, principalmente, no momento de proferir a decisão de mérito. (Apelação Cível n. 0003608-72.2008.8.24.0069, Terceira Câmara de Direito Civil, Relator: Marcus Túlio Sartorato, Julgado em: 04/12/2018)” (Apelação Cível n. 0308566-79.2015.8.24.0005, de Balneário Camboriú, rel. Álvaro Luiz Pereira de Andrade, Sétima Câmara de Direito Civil, j. 29-08-2019). RECURSO A QUE SE NEGA PROVIMENTO NA PARTE EM QUE DELE SE CONHECE. 2 Gabinete Desembargador Jorge Luiz de Borba Vistos, relatados e discutidos estes autos de Apelação Cível n. 0006898-38.2014.8.24.0020, da comarca de Criciúma (2ª Vara da Fazenda), em que é Apelante Ministério Público do Estado de Santa Catarina e Apelados Almeida Júnior Shopping Center S/A e outros: A Primeira Câmara de Direito Público decidiu, por unanimidade, conhecer do recurso em parte e, nesta, por maioria de votos, na forma do art. 942 do CPC, negar-lhe provimento, vencido o Exmo. Sr. Des. Pedro Manoel Abreu, relator originário, que lhe emprestava parcial provimento. Custas legais. O julgamento, realizado nesta data, foi presidido pelo Exmo. Sr. Des. Luiz Fernando Boller, com voto, e dele participaram os Exmos. Srs. Des. Pedro Manoel Abreu, Paulo Henrique Moritz Martins da Silva e Odson Cardoso Filho. Florianópolis, 14 de dezembro de 2020 Jorge Luiz de Borba RELATOR DESIGNADO 3 Gabinete Desembargador Jorge Luiz de Borba RELATÓRIO Por brevidade, adota-se o relatório apresentado pelo Exmo. Sr. Des. Pedro Manoel Abreu, eminente relator originário: O Ministério Público do Estado de Santa Catarina interpôs recurso de apelação contra sentença proferida nos autos da ação civil pública movida em face de PAVEI Construtora Ltda. VIP MOTEL LTDA EPP, Shopping Center das Nações Empreendimentos S/A e Almeida Júnior Shopping Centers S/A. A sentença sob combate julgou improcedente o pedido inicial formulado pelo apelante. Irresignado, verberou, em resumo, que: a) a sentença merece ser reformada pois os demandados não trouxeram aos autos qualquer prova que desautorizasse as alegações do Ministério Público; b) os primeiros requeridos são os proprietários e responsáveis pelo terreno e os dois últimos, Shopping Center das Nações e Almeida Júnior os responsáveis pela construção, desde a terraplanagem em área de preservação permanente – APP; c) a Fundação do Meio Ambiente – FAMCRI, foi inserida no polo passivo por ter emitido as licenças ambientais ora atacadas, inclusive por ter a obra ultrapassado os limites territoriais do Município; d) os réus agiram com descaso em relação às leis ambientais, em prol do poder econômico; e) o julgador baseou sua sentença em informações extrajudiciais, realizadas antes da demanda, desconsiderando laudo pericial produzido sob o crivo do contraditório; f) o laudo pericial foi claro ao indicar que houve edificação em APP e que a FAMCRI não era competente para licenciar a obra e sim a FATMA; g) a perícia identificou a existência de um talvegue e de um “CORPO HÍDRICO” intermitente, constatando-se ainda a existência da nascente ULDN027, identificada no âmbito do Projeto Nascentes 1ª Etapa e registrada sob as coordenadas UTM 662.595,085451m E e 6.825.521,170m N (Datum SIRGAS-2000); h) a obra compreende um corpo hídrico que foi canalizado, sem autorização do órgão ambiental; i) o imóvel realmente se situa entre dois municípios, ensejando a fiscalização do órgão ambiental do Estado de Santa Catarina. Ao final, pede o provimento do apelo, a fim de que se declare nula a licença ambiental e condenados os requeridos às medidas indenizatórias e compensatórias listadas no recurso. Em sede de contrarrazões, os requeridos particulares e a Fundação Municipal do Meio Ambiente – FAMCRI, manifestaram-se pela manutenção da sentença objurgada. A Douta Procuradoria-Geral de Justiça, em parecer da lavra do Dr. Murilo Casemiro Mattos, manifestou-se pelo provimento do recurso interposto. Este é o relatório. VOTO O recurso preenche os pressuposos extrínsecos de admissibilidade. Analisam-se suas razões. 4 Gabinete Desembargador Jorge Luiz de Borba Trata-se de recurso de apelação interposto pelo Ministério Público do Estado de Santa Catarina à sentença de improcedência do pedido formulado na ação civil pública que move em face de Pavei Construtora Ltda., Vip Motel Ltda. EPP, Shopping Center das Nações Empreendimentos S/A e Almeida Júnior Shopping Centers S/A. O Exmo. Sr. Des. Pedro Manoel Abreu, eminente relator originário, apresentou bem fundamentado voto no sentido de “conhecer parcialmente do recurso e dar-lhe parcial provimento, para obrigar os réus à aquisição de uma área equivalente à extensão da área degradada, com as mesmas características ecológicas, na mesma bacia hidrográfica, se possível na mesma microbacia hidrográfica, localizada no Município, conforme dispõe o artigo 17 da Lei da Mata Atlântica, devendo tal área ser averbada em sua matrícula registral como de preservação permanente”. Preliminarmente, afasta-se o pedido de suspensão do processo formulado com base na equivocada premissa de que se enquadraria no Grupo Representativo 07 desta Corte e, por outro lado, a arguição de nulidade da licença emitida pela Famcri – matéria sobre a qual recai o manto da preclusão, porquanto objeto de deliberações judiciais prévias nestes autos, inclusive por este Órgão Julgador. Relativamente a esses pontos, transcreve-se adiante a fundamentação trazida pelo digno relator originário, acolhida pela Câmara à unanimidade: Destaco, para logo, que não é o caso de suspender-se o processo por conta da existência de corpo hídrico no imóvel. A discussão que ensejou a suspensão de inúmeros processos nesta Corte diz respeito ao distanciamento de edificações de rios e cursos d’água, hipótese não ocorrente na espécie, uma vez que o curso d’água em questão foi canalizado. Numa palavra: não se discute aqui o distanciamento, debate-se, ao revés, o seu escondimento, prática infelizmente comum a quem quer se livrar das limitações administrativas impostas pelo Código Florestal. Mas não é apenas por isso que o processo não merece ser suspenso. É que, entre os pedidos formulados no recurso, não se vislumbra pretensão demolitória, limitando-se os pedidos constantes no apelo, em vista do efeito 5 Gabinete Desembargador Jorge Luiz de Borba devolutivo, à pretensão de ressarcimento pecuniário. Portanto, desnecessário que se observe a ordem de suspensão exarada pela 2. Vice-Presidência desta Corte, no Grupo Representativo 07. Pois bem. Colhe-se dos autos que o Ministério Público do Estado de Santa Catarina detonou a presente ação contra os requeridos, após ter apurado, em Inquérito Civil Público, que a Fundação do Meio Ambiente de Criciúma – FAMCRI autorizara a edificação de um shopping center (Shopping Center das Nações Empreendimentos S/A) nos imóveis registrados sob as matrículas 10.447 e 1.423. Consta ainda que testemunhas oculares presenciaram obras de canalização de cursos d’água no local, caracterizado como área de preservação permanente – APP. Diz-se, nos autos, que os requeridos serviram-se de 135 metros de tubos de concreto para o escondimento de curso d’água, e que a área foi construída sobre um “banhado”, servindo essa canalização para a drenagem do terreno. Sem delongas, outra alegação constante na exordial diz respeito à nulidade da licença concedida pela FAMCRI, pois o imóvel está edificado em área que ultrapassa os limites territoriais do Minicípio de Criciúma, daí porque, no entender do autor, a competência para a expedição de licença construtiva não seria do município, mas sim, do órgão ambiental pertencente ao Estado de Santa Catarina. Nesse ponto, o apelo nem sequer merece ser conhecido. É que o Ministério público reavivou tese que já foi objeto de agravo de instrumento nesta Corte, que entendeu por bem afastar a nulidade das licenças ambientais concedidas pela FAMCRI, nos seguintes termos (Agravo de Instrumento n. 2014.045575-8, rel. Des. Carlos Adilson Silva), in verbis: “2 – Da competência para o licenciamento O Ministério Público impugnou o licenciamento ambiental do empreendimento Shopping Center das Nações em aspecto formal, quanto à competência, e material, alegando a inobservância da existência de recursos hídricos naturais e suas respectivas áreas de preservação permanente. Inicio pela análise da competência. Sustenta o recorrente que porção do imóvel em que o empreendimento será implantado extrapola os limites do Município de Criciúma, incidindo em território do Muncípio de Içara/SC. Dessa forma, o órgão estadual, ou seja, a Fundação do Meio Ambiente de Santa Catarina – FATMA, seria competente para proceder ao licenciamento ambiental, motivo pelo qual as licenças concedidas pela Fundação Municipal do Meio Ambiente de Criciúma – Famcri seriam inválidas, devendo sua eficácia ser liminarmente suspensa. Nesta fase processual, não merece prosperar o reclamo. As assertivas recursais fundamentam-se nas informações técnicas fornecidas no Relatório de Pesquisa de Dados Geoespaciais nº 07/2014/CIP/GAM do Centro de Apoio Operacional de Informações Técnicas e Pesquisas do MPSC (fls. 313-330 do anexo de documentos), elaborado em 07/04/2014 por Fabio Rogério Matiuzzi Rodrigues, engenheiro cartógrafo, Cristiane Regina Muller, analista em geoprocessamento, e Diana da Silva Soares, acadêmica em geografia.Quanto à precisão dos dados e metodologia adotada, colhe-se do 6 Gabinete Desembargador Jorge Luiz de Borba parecer técnico em referência: “Os Cartogramas elaborados não foram testados quanto à exatidão cartográfica de suas coordenadas. Entretanto, todas as imagens utilizadas foram referenciadas à Base de Dados Cartográficos fornecida pela Fundação Municipal do Meio Ambiente de Criciúma – FAMCRI, por intermédio da sobreposição de pontos homólogos, com Erro Médio Quadrático de menor que 1 metro. Ressalta-se, à luz do Decreto n. 89.817/1984, que estes analistas desconhecem o Padrão de Exatidão Cartográfica – PEC – em que se enquadra a Base Cartográfica da FAMCRI/UNESC.” (fls. 318 do anexo de documentos). Ademais, salientam os autores do estudo que foi identificado o “limite municipal entre Criciúma e Içara, conforme apresentado na base de dados fornecida pela FAMCRI, o qual, na área do empreendimento, apresenta-se suficientemente próximo ao limites definidos na Lei Estadual n. 13.993/2007, possibilitando sua utilização neste relatório”. Esclareça-se que a Lei Estadual nº 13.993/2007 “dispõe sobre a Consolidação das Divisas Intermunicipais do Estado de Santa Catarina”, conforme descrito no próprio diploma legal. Feitas essas considerações, os experts apresentam cartogramas da área em exame, localizando a linha limítrofe entre os municípios de Criciúma e Içara, nos quais, de fato, uma faixa relativamente estreita, situada ao norte do imóvel, fica ao lado de Içara, enquanto o restante se insere no território criciumense. Em tese, este fato, uma vez comprovado, seria suficiente para se inferir que o licenciamento ambiental compete ao órgão estadual, de modo que o recurso preenche o requisito do fumus boni iuris. Com efeito, em matéria de licenciamento ambiental, os Estados possuem competência residual, nos termos do art. 8º, XIV, da Lei Complementar 140/2011, devendo licenciar as atividades que não se enquadram nas competências federal nem municipal, disciplinadas respectivamente nos artigos 7º, XIV, e 9º, XIV, do mesmo diploma. Nos termos do mencionado art. 9º, XIV, cabe aos municípios licenciar “as atividades ou empreendimento que causem ou possam causar impacto ambiental de âmbito local, conforme tipologia definida pelos respectivos Conselhos Estaduais de Meio Ambiente, considerados os critérios de porte, potencial poluidor e natureza da atividade”. Em Santa Catarina, as tipologias em referência se encontram definidas na Resolução nº 02/2006 do CONSEMA, cujo artigo 2º, alíneas b e c, dispõem: Art. 2.º- Excepcionalmente, alguma atividade constantes dos anexos I, II e III deixará de ser considerada como de impacto local passível de licenciamento pelo Município se: […] b) estiver localizada ou desenvolvida em dois ou mais Municípios; c) cujos impactos ambientais diretos ultrapassarem os limites territoriais do Município. Assim, caso reste demonstrado que o imóvel realmente se situa entre os dois municípios, extrapolará o âmbito local do impacto, sendo hipótese de competência da FATMA, o que invalidaria o licenciamento realizado pela 7 Gabinete Desembargador Jorge Luiz de Borba Famcri. Logo, presente a plausibilidade dos fundamentos jurídicos invocados pelo agravante. Nada obstante ter o Parquet logrado demonstrar esta possibilidade, deve ser negado o pedido de suspensão das licenças por não se vislumbrar lesividade e urgência, tampouco certeza suficiente quanto às premissas fáticas para justificar a adoção da medida. Com efeito, inexistem indícios de que a implantação do empreendimento poderá provocar impactos ambientais diretos ao Município de Içara, o que demonstra a ausência de periculum in mora a justificar as tutelas de urgência. Isso porque, das assertivas recursais, não se depreende a existência de bens ambientais situados em Içara que poderão ser diretamente afetados em razão do empreendimento. Vislumbram-se somente eventuais impactos de ordem urbanística, em face, por exemplo, do sistema viário, de abastecimento de água e esgoto sanitário, os quais não constituem o objeto da presente demanda e que foram abordados no Estudo de Impacto de Vizinhança – EIV (fls. 333-428 do anexo de documentos). Além disso, verifica-se nos autos informações que contrariam o teor do relatório emitido pelos técnicos do Ministério Público, a exemplo do conteúdo do Ofício nº 30/2014 (fls. 278 do anexo de documentos), expedido pela Secretaria de Infraestrutura e Mobilidade Urbana do Município de Criciúma/SC, declarando, com base em seus cadastros imobiliários e no plano diretor, que “[…] conforme consulta prévia, em anexo, a área do empreendimento está totalmente situada no Município de Criciúma em zona urbana consolidada, na divisa com o município de Içara, sendo que o terreno ocupa duas Zonas, a ZM1, 16 pavimentos e ZR3, 8 pavimentos”. Com base nas informações disponíveis na consulta de viabilidade expedida pelo Setor de Cadastro e Cartografia anexado ao ofício em referência, observa-se que o licenciamento urbanístico do projeto, bem como o recolhimento de IPTU tem sido efetuado pelo Município de Criciúma, porquanto o imóvel está cadastrado em área de sua administração. Outrossim, consta também das matrículas nºs 1.423 e 10.447 do 1º Ofício de Registro de Imóveis da Comarca de Criciúma (fls. 227-236 do anexo de documentos), que ambos os imóveis que compõem a área do empreendimento pertencem a aludido município e comarca. Some-se o fato de os próprios técnicos do agravante reconhecerem “as incertezas inerentes à base cartográfica utilizada neste relatório”, de modo que inexiste precisão suficiente para se afirmar que, de fato, o imóvel se estende ao Município de Içara. Cumpre ainda registrar que a Segunda Câmara de Direito Público já se manifestou acerca de empreendimento de igual ramo e vulto em implantação na mesma vizinhança, denominado Parque Shopping Criciúma, reconhecendo a competência municipal para o licenciamento ambiental em virtude do âmbito local do impacto. Por oportuno, transcreve-se o seguinte excerto do acórdão da pena do eminente Des. Sérgio Roberto Baasch Luz: “[…] nos termos do art. 9º, inciso XIV, alínea “a”, da Lei Complementar n. 8 Gabinete Desembargador Jorge Luiz de Borba 140/2011, compete exatamente ao Município, entre outras ações administrativas que visam resguardar o meio ambiente, promover o licenciamento ambiental das atividades ou empreendimentos que causem ou possam causar impacto ambiental de âmbito local. E, consoante dicção do mesmo art. 9º, inciso XV, alínea “b”, do Diploma legal referenciado, é, outrossim, da competência do Município, a aprovação para a supressão e o manejo de vegetação, de florestas e formações sucessoras em empreendimentos licenciados ou autorizados, ambientalmente, pelo ente público local.” (TJSC, Agravo de Instrumento n. 2014.016297-0, de Criciúma, rel. Des. Sérgio Roberto Baasch Luz, j. 24-06-2014). Assim, também em respeito ao princípio da isonomia, merece ser referendada a competência municipal para o licenciamento ambiental, ao menos nesta fase processual e juízo de cognição sumária não exauriente. Diante desse contexto, mostra-se desnecessária a suspensão das licenças, sendo recomendável aguardar a regular instrução do feito para se determinar a competência em julgamento definitivo. Assim, o agravo não merece provimento, no particular.” Como dito no v. Acórdão, os próprios técnicos do Ministério Público admitem incerteza acerca do levantamento feito por eles. Por outro lado, a questão registral aponta a totalidade do imóvel no Município de Criciúma, situação referendada pela municipalidade. É bem verdade que as coordenadas geográficas previstas em lei indicam que uma irrisória parte do imóvel se localizaria no Município de Içara (vide laudo pericial páginas 957/961). Todavia, a realidade fática é outra. Ambos os Municípios admitem o limite municipal ao largo do imóvel, considerando a via pública como marco divisório. Isso ocorre tanto em termos tributários quanto administrativos. Destaco: o desenho administrativo seguido por ambos os municípios não se amolda milimetricamente à cartografia. Em outras palavras, o Município de Criciúma se posiciona como se toda a área lhe pertencesse, ao passo que o Município de Içara se comporta como se tal área não integrasse seu território. Aliado a esse fato, observo que inexiste impacto ambiental no Município de Içara. Como bem apontado no v. Acórdão supra, eventual impacto se resume à esfera urbanística, não adentrando no campo ambiental. A imagem de página 959 é bastante esclarecedora. Denota-se que a porção do imóvel no município vizinho é ínfima e não há qualquer impacto ambiental (que não se confunde, in casu, com o impacto urbanístico), razão pela qual resta latente a competência do órgão ambiental municipal (FAMCRI), fato que exclui a competência estadual (FATMA), na medida que esta última é residual (só há competência do Estado se não for competência da União ou do Município). Nestes termos, não procede o pleito no que tange à anulação das licenças em seu aspecto formal (competência). Diz-se que o recurso não merece ser conhecido, no ponto, justo porque o Ministério Público limitou-se a reavivar os argumentos da inicial sem combater especificamente a matéria que inclusive já havia sido examinada no agravo. O 9 Gabinete Desembargador Jorge Luiz de Borba magistrado repetiu aqueles fundamentos na sentença, adotando-os como razão de decidir. Faltou ao apelo, com efeito dialeticidade neste aspecto. Quanto ao mérito recursal propriamente dito, confere-se, como aliás já se enfatizou na transcrição supra, que esta Câmara, em 30-1-2015, ao apreciar o Agravo de Instrumento n. 2014.045575-8, de relatoria do Exmo. Sr. Des. Carlos Adilson Silva, em julgamento que contou com a participação dos Exmos. Srs. Des. Paulo Henrique Moritz Martins da Silva e Paulo Ricardo Bruschi, reclamo esse interposto à decisão de indeferimento do pedido de antecipação da tutela, bem delineou os motivos pelos quais, até aquele momento do trâmite do feito originário, não havia prova de dano ambiental. O aresto foi assim ementado no excerto aqui pertinente: AGRAVO POR INSTRUMENTO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. PRETENSÃO QUE OBJETIVA DESCONSTITUIR AS LICENÇAS AMBIENTAIS CONCEDIDAS PARA A IMPLANTAÇÃO DE SHOPPING CENTER. ALEGADA EXISTÊNCIA DE NASCENTES E CURSOS D’ÁGUA NO TERRENO E, DE CONSEGUINTE, ÁREAS DE PRESERVAÇÃO PERMANENTE. […] II – MÉRITO RECURSAL. […] LICENCIAMENTO AMBIENTAL NO QUAL SE CONCLUIU PELA INEXISTÊNCIA DE NASCENTES E CURSOS D’ÁGUA NO TERRENO. DECLARAÇÕES E RELATÓRIO TÉCNICO OBTIDOS EM INQUÉRITO CIVIL QUE SÃO INCAPAZES DE REFUTAR AS CONCLUSÕES DO PARECER HIDROGEOLÓGICO APROVADO PELO CORPO TÉCNICO DA FAMCRI. ESTUDO REALIZADO COM BASE EM ANÁLISES DE CAMPO E SONDAGENS DO SOLO. METODOLOGIA QUE CONFERE MAIOR PRECISÃO DO QUE A INTERPRETAÇÃO DE FOTOS AÉREAS. NÍVEL DO LENÇOL FREÁTICO BAIXO DEMAIS PARA POSSIBILITAR O AFLORAMENTO DE NASCENTES E OLHOS D’ÁGUA. ELEVADO GRAU DE SEGURANÇA DAS CONCLUSÕES DE QUE O ACÚMULO DE ÁGUA NO TERRENO PROVÉM DE CHUVAS E DE ESGOTO, E NÃO DE FONTE NATURAL. NÃO INCIDÊNCIA DAS ÁREAS DE PRESERVAÇÃO PERMANENTE PREVISTAS NO ART. 4°, I E IV, DA LEI Nº 12.651/2012. As alegações do Ministério Público acerca da existência de águas no terreno, tanto no passado quanto no presente, foram devidamente debatidas no licenciamento ambiental, sendo a hipótese afastada mediante fundamentos técnicos razoáveis e com elevado grau de certeza, segundo se infere das assertivas do autor do estudo hidrogeológico e dos agentes públicos responsáveis pela apreciação técnica. É forçoso admitir que a metodologia utilizada no estudo hidrogeológico em referência, com análises de campo que envolveram, inclusive, sondagens do solo, conjugada com a especialidade técnica do profissional e sua aprovação pelo corpo técnico da FAMCRI, são 10 Gabinete Desembargador Jorge Luiz de Borba fatores que nitidamente conferem a possibilidade de se chegar a conclusões muito mais precisas e seguras do que o mero relato de leigos ou a interpretação de fotos aéreas. Com efeito, as nascentes e os olhos d’água originam-se do lençol freático e os cursos d’água, por sua vez, de nascentes. Os documentos acostados pelo agravante não indicam a altura do lençol freático onde se localizariam as alegadas nascentes, tampouco apontam de que nascentes adviriam os cursos d’água identificados nas fotografias aéreas. Embora seja possível, de cima, enxergar a existência histórica de corpos hídricos, não se verificam suas origens, se natural ou artificial, ou ainda se proveniente de chuvas. Assim, emerge dos autos remota possibilidade de os acúmulos de água se enquadrarem nas definições dos bens ambientais e suas respectivas áreas de preservação permanente previstas no art. 4°, I e IV, da Lei nº 12.651/2012. […] RECURSO NÃO PROVIDO (sublinhou-se). Transcrevem-se os fundamentos do voto, nos aspectos ora relevantes: 3 – Da existência de áreas de preservação permanente nos imóveis Alegou o agravante a invalidade do licenciamento ambiental em análise por desconsiderar a existência de áreas de preservação permanente em decorrência de nascentes e cursos d’água incidentes sobre o imóvel. Aduz que esses corpos hídricos teriam sido descaracterizados por obras clandestinas de drenagem do solo realizadas entre os anos de 2004 e 2005, razão de não terem sido constatados nos estudos técnicos que instruíram o procedimento licenciatório. Também, no ponto, não merece prosperar o agravo. Deveras, o conjunto fático-probatório colhido no inquérito civil não é, prima facie, capaz de refutar ou gerar dúvidas quanto às conclusões firmadas no procedimento licenciatório. Lastreiam as alegações do parquet três depoimentos, assim como o relatório técnico aludido no item anterior. Da leitura dos termos de declaração, observa-se que as testemunhas, profissionais que acompanharam as obras de canalização de corpo hídrico existente no local, são uníssonas em confirmar a existência, à época, de acúmulo e filete de água. Extraem-se os seguintes excertos dos respectivos termos de declaração, emitidos em 31/03/2014 (fls. 307-310 do anexo de documentos): Humberto Benício Casagrande: “que na área existia um banhado, além do curso d’água; que existia inclusive uma ponte para dar acesso a uma casa de administração de antena de rádio” Lédio D’Altoe: “que o motivo da canalização foi o volume de água que vinha da avenida centenário e o volume de água decorrente do próprio curso d’água originário de uma nascente que à época se encontrava dentro do imóvel; ao que recorda, não havia o lançamento de esgoto no referido curso d’água; que a partir do desmembramento do imóvel a nascente ficou localizada no imóvel vizinho, permanecendo o curso d’água dentro do imóvel de Matrículas nº 11 Gabinete Desembargador Jorge Luiz de Borba 10.447 e 1.423” Armando José Triches: “que existia no começo do imóvel um banhado, e deste banhado ‘corria um filete d’água’; que o objetivo da drenagem foi secar a água do terreno; que não sabe precisar se no local havia uma nascente, mas pode afirmar que a água nunca secava naquele local, somente depois que ocorreu a drenagem” Corroborando com o teor dos depoimentos, impende transcrever os seguintes trechos do Relatório de Pesquisa de Dados Geoespaciais nº 07/2014/CIP/GAM do Centro de Apoio Operacional de Informações Técnicas e Pesquisas do MPSC (fls. 313-330 do anexo de documentos): “Destacam-se os polígonos de cor verde, os quais indicam prováveis áreas de acúmulo de água. […] No entanto, não se descarta que essas áreas possam ter sido alagadas devido à ocorrência de algum evento climático, visto que não houve a vistoria in loco para análise das condicionantes ambientais que indiquem a origem deste acúmulo de água.” […] “A título de referência, é indicada a Área de Proteção [sic] Permanente (APP) de 50m da nascente, representada pela cor verde, e a faixa marginal de 15m dos cursos d’água, representada na cor amarela. No Cartograma 10 é indicada a Área de Proteção [sic] Permanente (APP) de 50m de nascente, representada pela cor verde, e a APP de 30m dos cursos d’água, representada pela cor vermelha. Estas representações foram feitas somente com base na hidrografia oficial fornecida pela FAMCRI.” E das conclusões do estudo, destaca-se: “Este relatório apresentou a evolução da ocupação local ocorrida entre os anos de 2001 e 2012. Os dados geoespaciais apresentados permitiram identificar a presença de cursos d’água e nascente, além das intervenções antrópicas, com consequente alteração da cobertura do solo na área foco da análise no período analisado. […] Ressalte-se que as interpretações apresentadas foram realizadas exclusivamente com base nos dados geoespaciais disponíveis, sem que tenham sido realizadas atividades de campo, tais como a reambulação, a qual visa identificar eventuais erros de comissão ou omissão” Percebe-se que tanto as testemunhas quanto o relatório técnico indicam a existência pretérita de águas no terreno, mas prescindem de quaisquer elementos técnicos que se reportem à sua origem, sendo inaptos para se concluir que estas constituam cursos d’água naturais ou nascentes, nos termos das definições das áreas de preservação permanente previstas no art. 4°, I e IV, da Lei nº 12.651/2012. Importa sublinhar que nenhum dos declarantes possui habilitação própria para a identificação de recursos hídricos, sendo dois administradores e um arquiteto, de modo que os termos “curso d’água”, “nascente” e “banhado” são empregados em seus depoimentos sem qualquer rigor técnico. Da mesma forma, a metodologia empregada no relatório técnico, a saber, a interpretação de imagens aéreas conjugada com a sobreposição de dados hidrográficos fornecidos pela FAMCRI, não logra demonstrar outra coisa senão 12 Gabinete Desembargador Jorge Luiz de Borba a existência de acúmulos de água no terreno, sem conferir qualquer indício sobre a natureza de sua origem. Em contrapartida, verifica-se que tais acúmulos de água não passaram desapercebidos pelo órgão licenciador. Com efeito, após farto debate em relação ao tema no procedimento licenciatório, instruído com análises de campo e a participação de profissionais com formação específica sobre a matéria, chegou-se à conclusão de que não poderiam eles constituir nascentes e de que inexistem indícios de cursos d’água, já que as águas que passam pelo imóvel provém de chuvas e esgoto. Impende aqui retomar os principais pontos em que o licenciamento tratou dessa discussão. Realça-se inicialmente o teor do Estudo Ambiental Simplificado – EAS (fls. 445-512 do anexo de documentos), elaborado pelo engenheiro ambiental André Francisconi Miranda, que afirmou: “cabe informar que a AID não apresenta quaisquer características que possam interferir em APP”. Do primeiro documento elaborado pela FAMCRI, o Parecer Técnico nº 486/2012 (fls. 962 do anexo de documentos), destacam-se as seguintes conclusões: “Não constatamos a presença de curso d’água dentro da poligonal da área objeto de estudo deste parecer.” E ainda: “De acordo com o Projeto Nascentes, não há nascente dentro da área em questão”. Em 20/08/2012, a fim de verificar a viabilidade da implantação do empreendimento, foi elaborado o Parecer Técnico nº 526/2012 da FAMCRI (fls. 230-231) pelo engenheiro agrônomo Rodrigo Diomário da Rosa e pelo diretor de licenciamento Erlon Paulo Gonçalves, no qual afirmaram que “na ocasião não foi constatado existência de córregos, nascente ou outro tipo de acúmulo de água”. Mais uma vistoria foi realizada em 18/12/2013, dessa vez por requisição da Promotoria de Justiça de Criciúma, resultando no Parecer Técnico nº 709/2013 da FAMCRI (fls. 153-158 do anexo de documentos), no qual os fiscais Jade Martins Colombi e Valmir Gomes constataram que “no local do empreendimento existe um acúmulo de água, característico de curso d’água ou nascente”, assim como que “existe uma boca de lobo com características de curso d’água que, em tese, foi canalizado”. Ante as feições características de curso d’água ou nascente, o órgão ambiental exigiu do empreendedor a elaboração de um estudo sobre a hidrologia do local. Foi então contratado o geólogo Márcio Luiz Geremias, que confeccionou o Laudo Técnico Hidrogeológico acostado às fls. 238-260, tendo inclusive realizado sondagens no solo para coleta de dados acerca da altura do lençol freático. Do referido estudo, colhem-se as seguintes observações: “No local, o terreno original não possuía inclinação suficiente ou depressão que pudesse interceptar o nível d’água (nível freático) ao ponto de gerar uma nascente” […] “Mesmo se ocorresse a descaracterização de nascente em algum ponto pelos serviços de terraplanagem realizados no início da década de 70, o referido ponto apresentaria vestígios de charcos (locais encharcados) e o 13 Gabinete Desembargador Jorge Luiz de Borba desenvolvimento de um solo hidromórfico, característicos de locais úmidos, porém, isto não se observa ao longo de todo terreno.” […] “(…) não se encontrou nenhum ponto encharcado ou acúmulo de água que sugerisse a presença de nascente ou olho d’água, tão pouco (sic) leito regular que indicasse a presença de curso d’água. A definição técnica deixa claro que a nascente deve ter ocorrência natural e com vazão suficiente para fluir em curso de água ou a fonte de acúmulo.” […] “após sua saturação, a argila funciona como uma superfície plástica (PVC) impedindo a infiltração da água e a sua eliminação ocorre somente pelo processo de evaporação” […] “Pela diferença da cota topográfica, de montante para juzante e a profundidade do lençol freático, não existem condições geológicas favoráveis à formação de nascentes de contato que poderia existir associada às litologias sedimentares da Formação Rio Bonito” […] “O curso d’água mais próximo refere-se ao próprio Rio Linha Anta, que passa a 0,75 km (aproximadamente) ao norte da referida área.” Após a apresentação do parecer em referência, os membros da FAMCRI solicitaram esclarecimentos ao geólogo (fls. 282-283 do anexo de documentos). Em resposta à entidade, asseverou o expert: “No terreno que vai receber o Shopping das Nações nunca existiu nascentes” […] “não existem indícios que concluem pela presença de canais de fluxo normal proveniente de fontes naturais” Por fim, a FAMCRI emitiu em 26/03/2014 o Parecer Técnico nº 149/2014 (fls. 235-237), firmado por seis agentes da instituição, sejam eles: o engenheiro agrônomo Rodrigo Diomário da Rosa, os biólogos Renan Yamashita Ferreira e Michelle Alano Ramos, o engenheiro químico Everton Pires Silva, e os fiscais Valmir Gomes e Jade Martins Colombi. Ressaltaram no parecer que, “após a análise do Laudo Hidrogeológico, realizada pelos técnicos da Famcri, houve uma reunião com a presença do Geólogo Marcio Geremias, onde foram levantados alguns questionamentos sobre o estudo técnico” (fls. 237). Acerca do nível do lençol freático no terreno, realçaram o seguinte: “No laudo consta que de acordo com as sondagens SPT realizadas, o lençol freático no terreno está na profundidade média de 4,3 metros em relação à superfície. Através de coleta de dados realizada nos dois poços de monitoramento existentes, o nível do lençol freático está numa profundidade de 2,15 metros em um dos poços, e no outro foi verificado a profundidade de 2,99 metros. Segundo o autor, esses pontos se encontram na parte mais baixa do terreno, sendo que nas partes mais elevadas o lençol freático vai ser encontrado numa profundidade em torno de 7 a 8 metros.” (fls. 236) 14 Gabinete Desembargador Jorge Luiz de Borba Consultaram ainda o Município de Criciúma acerca da existência de registros oficiais concernentes à hidrografia do local, consoante se infere do seguinte trecho: “Com base no princípio da precaução, a Famcri enviou o Ofício Nº 318/2014/FAMCRI ao Sr. André De Lucca, atual Secretário de Obras do Município de Criciúma, questionando-o a respeito da existência de nascente ou curso d’água em tempos passados. Em resposta, através do Ofício Nº 42/2014, o Sr. André De Lucca relatou que: ‘Não temos quaisquer registros sobre a existência de nascentes ou cursos d’água perenes na área em questão, existindo anteriormente uma vala de drenagem pluvial.’ Em outra ocasião, a Prefeitura de Criciúma, através de seus técnicos, informaram que a referida intervenção se refere a uma obra que recebe as águas de montante provenientes das chuvas e as servidas (esgoto).” – Ofício nº 30/2014 da Secretaria de Infraestrutura e Mobilidade Urbana de Criciúma (fls. Início do 2º volume, sem paginação) Mencione-se que no aludido Ofício nº 42/2014 da Secretaria de Infraestrutura e Mobilidade Urbana de Criciúma (fls. 284 do anexo de documentos), foi consignado ainda que “Na área existe uma drenagem pluvial que foi implantada pelo antigo proprietário, que recebe as águas da Avenida Jorge Elias De Lucca, Rua Silvio Búrigo e Rua Engº Jorge Becker.” Ao final do parecer, concluíram os agentes da FAMCRI pela inexistência de áreas de preservação permanente: “Tendo em vista os apontamentos supracitados, considerando todos os relatos feitos pelos profissionais legalmente habilitados, concluímos que o imóvel em questão não apresenta áreas de preservação permanente. O fato de haver uma drenagem no local, recorrente em diversos pontos do nosso Município, não evidencia a presença de canalização de curso d’água. Por fim, não havendo áreas de preservação permanente, a equipe técnica não se opõe quanto à implantação do empreendimento no local.” Diante dessa extensa análise, tem-se que as alegações do Ministério Público acerca da existência de águas no terreno, tanto no passado quanto no presente, foram devidamente debatidas no licenciamento ambiental, sendo a hipótese afastada mediante fundamentos técnicos razoáveis e com elevado grau de certeza, segundo se infere das assertivas do autor do estudo hidrogeológico e dos agentes públicos responsáveis pela apreciação técnica. É forçoso admitir que a metodologia utilizada no estudo hidrogeológico em referência, com análises de campo que envolveram, inclusive, sondagens do solo, conjugada com a especialidade técnica do profissional e sua aprovação pelo corpo técnico da FAMCRI, são fatores que nitidamente conferem a possibilidade de se chegar a conclusões muito mais precisas e seguras do que o mero relato de leigos ou a interpretação de fotos aéreas. Com efeito, as nascentes e os olhos d’água originam-se do lençol freático e os cursos d’água, por sua vez, de nascentes. Os documentos acostados pelo Parquet não indicam a altura do lençol freático onde se localizariam as alegadas nascentes, tampouco apontam de que nascentes adviriam os cursos d’água 15 Gabinete Desembargador Jorge Luiz de Borba identificados nas fotografias aéreas. Embora seja possível, de cima, enxergar a existência histórica de corpos hídricos, não se verificam suas origens, se natural ou artificial, ou ainda se proveniente de chuvas. Assim, emerge dos autos remota possibilidade de o acúmulo de água se enquadrar nas definições dos bens ambientais e respectivas áreas de preservação permanente previstas no art. 4°, I e IV, da Lei nº 12.651/2012. Salienta-se que o Ministério Público não impugnou o conteúdo do estudo hidrogeológico, cingindo-se a afirmar que é imprestável, por ter sido patrocinado pelos empreendedores, que são os maiores interessados na viabilidade das obras. Ora, se assim fosse, nenhum licenciamento ambiental ou urbanístico seria válido, já que a apresentação dos estudos prévios exigidos, seja de impacto ambiental ou de vizinhança, é sempre incumbência do empreendedor. Mesmo contratado por particulares, merecem credibilidade os profissionais legalmente habilitados perante os respectivos órgãos de classe, mormente quando, além de zelar por sua reputação, eles encontram-se sujeitos a infrações éticas, sanções administrativa e até criminais, consoante tipificação descrita no art. 69-A da Lei 9.605/1998, que estabelece severa pena de 3 a 6 anos de reclusão e multa a quem “elaborar ou apresentar, no licenciamento, concessão florestal ou qualquer outro procedimento administrativo, estudo, laudo ou relatório ambiental total ou parcialmente falso ou enganoso, inclusive por omissão”. Além disso, os servidores públicos responsáveis pelo licenciamento ambiental igualmente se submetem às penas do art. 66 da Lei 9.605/1998, o qual dispõe a seguinte conduta: “Fazer o funcionário público afirmação falsa ou enganosa, omitir a verdade, sonegar informações ou dados técnico-científicos em procedimentos de autorização ou de licenciamento ambiental”. Nesse contexto, deve prevalecer a presunção de legitimidade dos atos administrativos, em solução semelhante àquela referendada pela Segunda Câmara de Direito Público ao apreciar requerimento liminar de suspensão das licenças ambientais concedidas ao empreendimento Parque Shopping Criciúma, conforme mencionado no item anterior. Colhe-se do acórdão em referência, de relatoria do Des. Sérgio Roberto Baasch Luz: “Corolário disso, é presumir-se legítimos e imperativos os atos administrativos. Nessa tessitura, valiosos são os ensinamentos de Marçal Justen Filho, que vaticina: ‘A presunção de legitimidade ao ato administrativo é um instrumento necessário à satisfação dos deveres inerentes à função administrativa. Como há encargos impostos ao Estado e fins que deve realizar, tem ele de dispor de instrumental jurídico compatível. Não seria possível ao Estado cumprir suas funções administrativas se lhe fosse reservada situação jurídica idêntica àquela dos particulares.Se não houvesse a presunção de legitimidade do ato administrativo, o Estado teria de recorrer ao Poder Judiciário para obter provimento jurisdicional comprovando a legitimidade dos seus atos, e somente assim poderia vincular os terceiros.’ (Curso de direito administrativo. 3. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2008. p. 280)” (TJSC, Agravo de Instrumento n. 2014.016297-0, de Criciúma, rel. Des. 16 Gabinete Desembargador Jorge Luiz de Borba Sérgio Roberto Baasch Luz, j. 24-06-2014) E, quanto à urgência da tutela postulada, salientou que “o periculum in mora, no caso, é inverso, tendo em vista as vultosas quantias que envolvem um empreendimento desse porte e o que representa em cifras o atraso das obras” (ibidem). Ressalte-se ainda que, caso no decorrer da instrução reste constatada a fragilidade das motivações técnicas que concorreram para a concessão das licenças, o empreendedor será severamente prejudicado, pois terá que suportar a perda do investimento, além da restauração ambiental da área, o que revela também seu interesse na exatidão do parecer técnico contratado. Destarte, considerando que os elementos fornecidos pelo agravante apenas confirmam a existência de acúmulos de água no terreno, sem colocar em dúvida as conclusões das recorridas acerca de sua origem pluvial e proveniente do esgoto, cumpre, neste momento processual, privilegiar a validade do licenciamento ambiental. O digno magistrado a quo externou a compreensão de que, mesmo à luz da prova produzida no curso da instrução processual, não se demonstrou o dano ambiental: Corroborando a conclusão acima tem-se o laudo pericial produzido nos autos em regular fase de instrução. Discorre o expert, nas páginas 946/948, acerca da evolução temporal do imóvel, identificando intervenção humana desde 1957. Descreve que desde a década de 70 houve alteração no corpo hídrico existente no local, cuja origem, contudo, não pôde precisar, podendo ser tanto um rio quanto simples caminho para escoamento superficial das águas da chuva. Tal fato é reafirmado na resposta aos quesitos do autor: “Atualmente, é possível identificar apenas uma drenagem canalizada, todavia, não é possível determinar se esta, trata-se de um corpo hídrico natural (de regime intermitente ou perene) ou um talvegue para o escoamento de águas superficiais.” (página 962) Naturalmente este Juízo não ignora o chamado Princípio da Precaução, segundo o qual mesmo em caso de dúvida devem ser tomadas medidas que visem evitar a degradação ambiental. Contudo, o caso em tela não comporta a aplicação deste princípio. Em primeiro lugar porque a área em questão se trata de zona urbana consolidada (página 969), e a canalização foi feita em meados de 2008 pelo então proprietário (página 967). É de bom alvitre lembrar que corpo hídrico canalizado não possui área de preservação permanente. Em segundo lugar porque a canalização havida em nada contribuiu para o agravamento da questão ambiental naquela área, conforme resposta ao quesito n. 13 dos réus (página 973). Vale destacar a afirmação do experto ao responder o quesito n. 12 do Ministério Público (página 965), quando afirma que o empreendedor, à época das intervenções, atendeu a todas as condições e padrões aplicáveis aos corpos d’água. 17 Gabinete Desembargador Jorge Luiz de Borba Cabe, destacar, ainda, que o perito faz menção a uma nascente que se encontra aproximadamente a 180 (cento e oitenta) metros do empreendimento, muito além do limite mínimo legal. Nestes termos, considerando inexistir prova cabal de que haja curso d’água natural no imóvel, aliado ao fato de a prova técnica não ter delimitado nenhum dano ao meio ambiente por conta do empreendimento, também não procede o pleito no que tange à anulação das licenças em seu aspecto material (existência de recursos hídricos). Por corolário lógico, estando formal e materialmente hígidas as licenças ambientais, não há que se falar em dano a ser recuperado, muito menos em indenização dele decorrente, razão pela qual a improcedência do pedido é a medida que se impõe. No entender do eminente relator originário, porém, seria imperiosa a condenação dos réus a compensar o dano ambiental que teria decorrido não da construção em APP, mas da supressão de vegetação no local, o que viria ocorrendo desde 1957. Os princípios da precaução, do poluidor-pagador e o entendimento segundo o qual a obrigação de reparar dano ambiental é propter rem estariam a contribuir para se alcançar a referida conclusão. Ousa-se divergir de Sua Excelência, com as possíveis vênias. Afinal, a causa petendi invocada na exordial tem por base exclusivamente a premissa de que os licenciamentos ambientais sub judice seriam nulos porque se trataria de APP por força dos corpos hídricos existentes no local e suprimidos clandestinamente. Noutras palavras, jamais se cogitou de ressarcimento por força, pura e simplesmente, da supressão alegadamente desautorizada da vegetação outrora existente no local. O relato fático lançado na exordial, precisamente às fls. 19-30 destes autos, evidencia que a pretensão condenatória tem claro e exclusivo vínculo com a existência e a canalização de cursos hídricos, não se podendo, na fase recursal, ampliar-se a causa de pedir, sob pena de violação aos princípios da ampla defesa, do contraditório e do devido processo legal. Decidiu esta Corte que, “Assim como não é dado à parte autora modificar os elementos constitutivos da demanda (partes, causa de pedir e pedido) no curso do processo, ao Órgão Judicial, pela regra da correspondência (CPC/1973, art. 128 e 460), não é permitido deles desvincular-se durante o 18 Gabinete Desembargador Jorge Luiz de Borba trâmite processual e, principalmente, no momento de proferir a decisão de mérito (Apelação Cível n. 0003608-72.2008.8.24.0069, Terceira Câmara de Direito Civil, Relator: Marcus Túlio Sartorato, Julgado em: 04/12/2018)” (Apelação Cível n. 0308566-79.2015.8.24.0005, de Balneário Camboriú, rel. Álvaro Luiz Pereira de Andrade, Sétima Câmara de Direito Civil, j. 29-08-2019). Por outro lado, o laudo pericial foi claro no sentido da impossibilidade de se aferir quando houve a canalização e mesmo qual a origem do curso d’água canalizado. O relevantíssimo princípio da precaução não serve para sufragar condenação a ressarcimento na ausência de prova relativamente à ilicitude da conduta – requisito à responsabilidade civil ex vi do art. 927 do Código Civil. O onus probandi quanto ao tema permanece exclusivamente com o autor nos moldes do art. 373, I, do CPC/2015. Ante o exposto, o recurso deve ser conhecido em parte e, nesta, desprovido. É o voto.
No Comments